segunda-feira, 29 de setembro de 2008

A crise “americana”: crise universal de valores

Há algo que deveria nos incomodar na assim chamada “crise financeira americana”. Parece existir um acordo tácito entre os meios de comunicação, os analistas e comentaristas econômicos para que a crise seja interpretada como uma crise meramente financeira, de caráter especulativo, e circunscrita ao território americano. Ou seja, querem nos dar a entender que é uma crise intimamente ligada à falta de pagamentos, insolvência, falta de credibilidade circunstancial dos mercados, duvidosa administração bancária, falta de liquidez e outras pérolas do “economês. As próprias medidas político-econômicas que vêm sendo debatidas para debelar ou amenizar os efeitos desse colapso de incalculáveis proporções parecem confirmar tudo isso. Há algo que cheira mal nisso tudo.
A atual crise não é somente financeiro-especulativa, ligada a investimentos mal calculados ou a inversões repentinas de tendência dos mercados. Ela desmascara a face real do comportamento social e humano global: o anseio desmedido, quase neurótico, de consumir, de obter sempre mais dinheiro disponível para comprar mais mercadorias e bens de todo gênero. A crise atual é como um termômetro que nos alerta de forma brutal que a febre consumista chegou ao ápice e deve ser detida. Já num passado recente havia quem alertasse sobre os perigos reais de “estouro da bolha” especulativa e que suas conseqüências seriam caóticas para todos.
As agências financeiras e os bancos conhecem a dependência servil que a grande massa humana tem com relação ao dinheiro e ao seu poder. Sabem os níveis de idolatria que existem na alma humana diante da mercadoria, o seu fascínio e poder de sedução. Facilitaram créditos, estimularam o deslumbramento humano perante a mercadoria e distorceram as perspectivas de posse e de bem-estar dos seus clientes. Estes acabaram entrando num vórtice de consumo de bens, na maioria das vezes fúteis, mesmo sem ter condições reais de adquiri-los, e adotando o mesmo objetivo que os bancos, ou seja, a perspectiva de ganhar mais ainda. Bancos e clientes se aliaram num jogo suicida em que um precisava do outro para lucrar, ganhar e possuir sempre mais. Um tentando iludir o outro de que os dois poderiam sair ganhando infinitamente sem limites. Tudo isso ruiu fragorosamente.

Isto não ocorre somente na terra do tio Sam. Isto não mexe só com o bolso das pessoas e com sua capacidade administrativa. Mexe com o nosso universo de valores. Mexe com a nossa capacidade de atender a necessidades essenciais e de fixar prioridades que dêem sentido à nossa vida. Mexe com a nossa autonomia e independência perante o poder sedutor e, ás vezes, irresistível, do “ídolo dinheiro-mamona” que exige submissão e veneração total. A crise “americana” é global e existencial porque ela desnudou definitivamente a alma humana. Arrancou-nos a máscara e tirou o que nos encobria, expondo definitivamente para nós mesmos a nossa nudez-fragilidade, cheia das rugas da ambição e da ganância que escraviza. A crise não será superada somente com a injeção de centenas de bilhões de dólares entregues a instituições financeiras com o intuito de sanear os mercados abalados e readquirirem credibilidade. Dinheiro, diga-se de passagem, que será mais uma vez desembolsado pelas vítimas da idolatria consumista e gananciosa.
A crise poderá significar uma lição de vida se a partir dela a humanidade começar a fazer escolhas que tenham em consideração a sobriedade de vida, o respeito pelo ambiente e as legítimas aspirações de milhões de “sem-cartão-de-crédito” que anelam por equidade e justiça social.

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