sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

“....e não nos deixeis sucumbir perante a tentação...”. Ou seja, a valor pedagógico da tentação.

A narração evangélica desse primeiro domingo de quaresma mostra a grandeza literária e a perspicácia teológica e catequética de Marcos. Um autêntico representante do hermetismo literário: com poucas e densas pinceladas nos apresenta uma vasta e profunda teologia que retrata o processo existencial humano.
O contexto: Jesus acaba de “descobrir” o seu chamado profético. No batismo percebe com clareza qual deverá ser a sua missão daí em diante. Os quatro evangelhos descrevem isso como uma experiência reveladora, única, pessoal, original. Jesus vê nisso uma intervenção do próprio Deus que o confirma nessa sua nova e inédita escolha/decisão. É uma autêntica situação-limite em que a pessoa toma consciência (aparentemente) definitiva da sua nova identidade, a assume, e a partir dela se fortalece e constrói o seu futuro.
“O Espírito o impeliu para o deserto. Aí esteve quarenta dias. Foi tentado pelo demônio...” (1,12-13). É lógico se perguntar por que esse mesmo Espírito (de Deus) que mostra com clareza a Jesus a sua identidade e o caminho a seguir o impele ao deserto, ao lugar por excelência da tentação/provação, sob o domínio do demônio. Para o teólogo Marcos não há contradição: esse mesmo Espírito que chama, ilumina, mostra e confirma é o mesmo que testa, prova e tenta para ver se o novo chamado possui estrutura ética e motivações suficientes para levar a cabo a nova missão. O deserto é o espaço teológico-existencial em que a pessoa sempre será submetida a fundamentar e verificar as motivações que o levaram a tomar uma determinada decisão/opção. O fato de Jesus ter tido uma revelação iluminadora marcante não significa que é colocado numa redoma inviolável, livre de qualquer tipo de questionamento, dúvida e insegurança sobre a decisão tomada. O tempo todo (40 significa totalidade) terá que fundamentar, remotivar e reatualizar a opção feita. É o noviciado permanente da vida que está contemplado no projeto pedagógico de Deus.
O deserto, entretanto, é também o espaço simbólico da solidão, do não habitado (só anjos e animais selvagens...). Não existem multidões que nos apóiam, que nos confirmam, que nos protegem. A pessoa, no deserto, não pode fugir de si mesma, nem se apoiar em outros. A pessoa se encontra só, ou melhor, ela e o seu “alter ego”, o seu “outro eu”, ou seja, aquilo que ela poderia ter sido ou seria se ela tivesse feito uma escolha diferente/oposta daquela que efetivamente fez. O seu consciente e o seu inconsciente se encontram e duelam dramaticamente um frente ao outro, cobram-se e constroem-se mutuamente.
Por isso que o deserto se torna o espaço simbólico-teológico privilegiado da tentação, pois ao estarmos só conosco mesmos (o eu consciente e o eu inconsciente) não temos chance de fugir de nós mesmos. Flagramos-nos com os nossos medos mais recônditos nunca experimentados antes, com nossas seguranças minadas e dúvidas inesperadas, com nossas revoltas interiores e conformações fatalistas, com nossos sonhos, ilusões e sensações de vazio interior. É o Espírito que nos coloca nisso, nada que não seja humano e divino ao mesmo tempo! A tentação é algo inevitável e faz parte da pedagogia humano-divina, da dimensão sim-bólica e dia-bólica. Ela é fundamental na existência humana, pois obriga a pessoa a rever constantemente as motivações profundas que determinam o seu ser e agir. Ajuda a fortalecer a estrutura ética pessoal.
Na própria oração do Pai Nosso a parte final deve ser reinterpretada no sentido que Jesus não pede para não sermos tentados – algo inevitável – e sim, para não sucumbirmos perante a tentação. Ou seja, pede para não nos apavorar e retrair diante do dilema, da dúvida, do vazio interior, da pulsão do poder, por ser algo angustiante e sofrido. Ao enfrentarmos com firmeza uma tentação nos fortalecemos e nos preparamos para encarar as outras que virão a seguir. Elas nos acompanharão a vida inteira. Ao longo da vida sempre teremos que lutar com o “outro eu”, com a pulsão que temos em nós em procurar, impor e abusar do poder que temos. O poder-pulsão de dominar e usar as pessoas, de explorar e manipular circunstâncias, valores, símbolos. Uma tentação que Jesus enfrentou a vida inteira, com lágrimas e sangue, sem se apavorar e acovardar.

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