quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

O Maranhão comemora 100 de nascimento de Dom Hélder Câmara. O legado do ' Santo Rebelde' no testemunho de Pe. Marcos Passerini

Reproduzo, abaixo, o discurso pronunciado por Pe. Marcos Passerini em ocasião da solenidade da comemoração dos 100 anos de nascimento de Dom Hélder Câmara, na Assembléia Legislativa do Maranhão, em São Luis.
Dom Hélder havia sido nomeado bispo de São Luis, em 1964, mas não chegou a assumir por causa do falecimento do bispo do Recife, lugar que ele acabou ocupando. No lugar de Dom Héder veio para a sede de São Luis Dom Mota procedente de Sobral (CE)
'Dom Helder, o Santo Rebelde, cidadão do mundo, bispo da Igreja porque bispo voltado para o mundo, cristão de fé prática, cristão de práticas revolucionárias não a partir de alguma teoria política, mas a partir de uma intuição que é maior do que qualquer teoria... a intuição que ele tinha do amor, da misericórdia e da justiça.
Intuição concretizada no compromisso profundo com o mundo, com a justiça, com os pobres. Compromisso alicerçado na mística fruto do encontro com Deus e a ternura da graça divina. Duas dimensões que em Dom Helder se traduziam no rigor e vigor no discurso... na hora da denúncia...... Ao mesmo tempo, aquela profunda ternura com as pessoas, com as coisas, com toda a natureza, especialmente com os mais humildes.

O que mais me fascina e me intriga em dom Helder é sua extraordinária sensibilidade: a sensibilidade do Bom Pastor com os olhos e os ouvidos do coração (permitam-me a expressão bíblica), sempre “antenados” nos pequenos e grandes acontecimentos da vida das pessoas e da história.
Muito embora considerado um dos pais da Teologia da Libertação Dom Helder nunca foi propriamente um teólogo nem tampouco um intelectual. Mesmo assim, com sua extraordinária sensibilidade a tudo que acontecia, conseguia captar logo todos os sinais, todas as coisas. Daí sua capacidade de seduzir, convencer, orientar, sua habilidade inteligente de se aproximar das pessoas, de interferir, de aglutinar, conseguir alguma coisa, de como mudar estratégia, até onde insistir.... Reações essas que não vinham da intelectualidade, mas de uma sensibilidade com raízes profundas numa espiritualidade que harmoniza o humano com o divino (Não estará faltando exatamente isso, hoje, nas lideranças religiosas, política e sociais?)

Leonardo Boff diz que temos que pensar Dom Helder como “um fenômeno teológico, pois nele há uma densidade do sagrado, junto com a densidade do humano que desafia a compreensão”. (Gandhi!?) E é por aí que eu vejo parte do legado que Dom Helder deixa antes de tudo aos cristãos, e em particular aos que por vocação exercem dentro da Igreja o ministério sacerdotal e episcopal.
Legado que precisa ser retomado com extrema responsabilidade e urgência: aprender a unir história e realidades concretas com a utopia, unir o reino de Deus com a revolução radical feita de opções reais capazes de revelar um pouco desse reino, abraçar sem ambiguidades ou demagogia a causa dos pobres, repensar as estruturas eclesiásticas, hoje muito engessadas, e voltar a acreditar que a missão/identidade da igreja de Cristo é ‘ser fermento e luz’ para as multidões esquecidas mediante pequenas comunidades eclesiais de base com a compaixão de sempre, mas com novos parâmetros e nova metodologia. Repensar um ecumenismo em pé de igualdade, não a partir de dogmas ou doutrinas, mas a partir do compromisso de conversão radical de cada um de nós e da defesa intransigente da vida para todos, somar forças com as organizações sociais que buscam de verdade resgatar a dignidade dos humildes... abraçar e defender toda criação e criatura como templos de Deus.
PARTE II

Tenho a impressão que apesar da guinada operada pelo Vaticano II e pelas Conferências Episcopais Latino Americanas nossa Igreja Católica (não falo das demais igrejas!) volte a sofrer de uma antiga doença chamada eclesiocentrismo. Os sintomas dessa doença são: angústia causada pela evasão dos “fiéis”, fobia das outras religiões encaradas como “seitas sedutoras”, preocupação exagerada em manter a “platéia” entretida nos templos e nas liturgias midiáticas, mentalidade de cruzada para “reconquistar” as “ovelhas perdidas...
Para muitos pastores acometidos por esta doença, “evangelizar” deixa de se o imperativo do testemunho do amor gratuito de Deus e da esperança cristã em meio às realidades mais sofridas e desumanas. Sem falar da dificuldade de como instaurar o diálogo evangelizador, de igual para igual, também com os intelectuais, os profissionais liberais e os demais formadores de opinião. De consequência, leigos e leigas que militam nas pastorais sociais ou que se engajam nas organizações sociais em busca de uma transformação estrutural da realidade sócio-econômica, recebem pouquíssima atenção e quase nenhum incentivo.
No desdobramento desse legado, Dom Helder Câmara nos lembra ainda, que se o cristianismo não coloca no centro a causa do pobre, ele não está em conformidade com a prática de Jesus de Nazaré. Mas é bom que se diga: Dom Helder nunca teve um conceito pauperista dos pobres. O pobre é aquele que tem dignidade, que tem criatividade, que tem inteligência, que tem fé, que tem esperança e, apesar disso, ele nunca é escutado. É duplamente pobre: pobre por não ter condições de sobrevida e pobre porque a riqueza espiritual e antropológica que ele possui não é reconhecida e valorizada.....
Ao mesmo tempo Dom Helder continua nos alertando a buscarmos sempre as causas que geram o pecado da pobreza. E esse é um ponto ainda não assimilado por muitos cristãos e não cristãos que persistem numa visão moral de comiseração para com os pobres e nunca de luta permanente para extirpar as causas estruturais que geram sempre mais exclusão e dependência. No documento de Puebla – faz 30 anos – já se dizia que “a pobreza é conseqüência de mecanismos econômicos, políticos, culturais”.... E é por isso que hoje somos obrigados a reconhecer que a pobreza foi e continua sendo uma produção humana diabólica que vai gerando mais empobrecimento. Esse pecado social, como toda injustiça, clama perante o Deus Criador.

Esse legado dos pobres e da denúncia da causa que gera empobrecimento seja talvez o grande testamento espiritual, intelectual e teológico de Dom Hélder que, se não for assimilado pela sociedade, vai contribuir para perpetuar os paternalismos das políticas de boa vontade e meramente assistencialistas que só sabem produzir medidas econômicas compensatórias. Dom Helder muito antes do aparecimento das crises financeiras mundiais já apontava para a necessidade de políticas estruturantes capazes de atingir as causas geradoras de injustiça. Estou percebendo que nada acrescentei ao testemunho vivo da palavra de Dom Helder. Espero, pelo menos, não ter estragado o encantamento e a sedução de suas palavras.
Permitem-me, finalmente concluir dizendo que Dom Helder terá que ser lembrado não somente como bispo e cidadão brasileiro que, preocupado com as distorções da ditadura militar, tentou derrubar o muro de silêncio que ela havia imposto à imprensa nacional e aos cidadãos do País denunciando-a internacionalmente. Dom Helder, já vislumbrava, mundo afora, qual democracia poderia ser construída no Brasil ou em qualquer outro país.
Não uma democracia dirigida por iluminados vanguardistas, nem a democracia formal do capital liberal, nem a democracia populista de caráter messiânico, e sim uma democracia que surgia dos pobres compreendidos como ‘força social’.
Como já lembrado, os pobres embora não possuindo bens, possuem ‘uma força de pensamento’ (os pobres sabem pensar!) capaz de transformar o País.
Sem mistificá-los, dom Hélder compreendeu que eles, de um lado revelam as contradições sociais e econômicas existentes e, do outro, apontam e constroem do seu jeito uma sociedade mais equânime, menos egoísta e arrogante, pois a verdadeira revolução ‘começa’ desde o interior das pessoas, no coração e na mente...
E aqui vale a pena concluir mesmo com a célebre frase de Dom Helder: “Feliz daquele que sabe que tem que mudar muito para ser sempre o mesmo”...'

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