terça-feira, 6 de maio de 2014

Pelo fim das revistas vexatórias nas penitenciárias. Relato de um ex-detento

O direito à nossa própria intimidade é inalienável e intransferível. Seja qual for a circunstância, deve ser preservado. Eu me sentia agredido no fundo de minha alma. Não tanto quando “eles” nos faziam ficar nus, mas quando minha mãe, já velhinha, chegava chorando em minha cela, sentindo-se invadida e desrespeitada. Aquelas mulheres não tinham dó ou piedade, pareciam insensíveis e diziam “cumprir ordens”. O Tribunal de Nuremberg acabou com o mérito dessa alegação. Quem assistiu o recém-exibido filme “Hannah Arendt”, pode observar isso. Faziam uma senhora de mais de 60 anos, que podia ser mãe delas, ficar nua, dar pulinhos, subir no banquinho, abrir suas partes íntimas, a humilhando ao máximo. E ela tinha que ficar quietinha. Caso reclamasse, não entrava para me visitar. E se discutisse, levava suspensão de um mês sem poder entrar na prisão. A consciência pegava pesado. Em última análise, eu era culpado por haver cometido os delitos que me trouxeram preso, submetendo minha mãe ao jugo daquela gente. As primeiras vítimas do preso são aqueles que o amam. Aquelas mulheres naquelas filas enormes e inchadas como uma cobra gorda são mães, esposas, filhas (amigas não são permitidas). As que ali estão não são “bandidas”, “traficantes” e muito menos “putas”. São pessoas que trabalham, pagam impostos e deram o azar de ter um parente naquelas condições –e seria desumano abandoná-los. E os guardas de presídio são servidores públicos; ganham seus salários para servir ao público e não para tratá-los com grosseria e vexame.

Eu ainda estava preso e, por meio de cartas, consegui trazer na visita e conquistar uma mulher excepcional. Ela tinha formação em psicologia, mestrado, havia frequentado cursos de especialização na Europa por 4 anos e falava 4 idiomas fluentemente. Li e estudei muito para fazer face ao seu vasto conhecimento. Ela era tão bonita, delicada, meiga e educada que os guardas não a deixaram entrar para me visitar. Ela insistiu e foi conduzida ao diretor de plantão. Este ficou quase duas horas tentando dissuadi-la de me visitar.A garota foi firme, não sou bobo e já a havia prevenido; ela forçou a barra e entrou. Ficamos cerca de três anos juntos. Chegamos a noivar e fazer um contrato de casamento. Mas antes de casarmos, a moça não suportou mais. A pressão foi grande, ela estressou com a rotina de maus tratos e desrespeito nas filas de visita da prisão. Eu, por não saber quando sairia e por amá-la de verdade, não tentei impedir que seguisse sua vida. Sofri horrores, fiquei muito revoltado e cheio de ódio no coração. Principalmente porque sabia que “eles” a haviam afastado de mim. Passei mais de um ano para conseguir sorrir novamente.

Não foi o PCC quem humanizou as prisões, e sim a entrada das mulheres nas celas, nos pátios e na vida prisional a partir de 1985. Sempre foram elas que representavam a sociedade para nós, e não os guardas ou diretores. Estes, sabíamos, eram nossos algozes, inimigos viscerais. Elas sempre foram contra a violência e possuem armas de convencimento insuperáveis. A pena, segundo a doutrina da Lei, é exclusiva do réu condenado. Sua família, seus amigos, as pessoas de suas relações não podem, pela lei, serem penalizadas com eles. Isso é ilegal. E não podemos esquecer: o mecanismo de obrigar, submeter pessoas a atos vexatórios e que atentem contra sua moral pessoal, constitui-se em tortura. E quem colabora ou promove tortura, é torturador.
Percebo hoje que há progressos. As mulheres estão se movimentando (sempre elas). E até as lideranças dos guardas admitem que a revista íntima é realmente vexatória (eles também têm mães, esposas, filhas e são humanos). Propõem ao Estado que contrate mais guardas e lhes forneça aparelhagem e tecnologia adequada para eliminar esse desrespeito ao contribuinte. O culpado é sempre o Estado, ô Estado...

* O escritor Luiz Alberto Mendes Jr., autor de Memórias de um Sobrevivente (Cia das Letras), passou 31 anos preso em diversas cadeiras brasileiras. No dia do Massacre do Carandiru, estava detido no Pavilhão 8, ao lado de onde aconteceu a chacina (Pavilhão 9). (Fonte: Carta Capital)

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